De Chirico e o sonho clássico da Modernidade

Giorgio De Chirico, O enigma de um dia, 1914. MAC-USP
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Por MARCELO GUIMARÃES LIMA*

Dos muitos paradoxos e contradições que permeiam o projeto artístico de De Chirico o mais fundamental talvez seja o do construtor da modernidade pictórica

A obra de Giorgio De Chirico (1888-1978) pode ser considerada, ao lado de Picasso, Braque, Matisse, entre outros mestres inovadores, como um dos momentos fundamentais da evolução da pintura moderna. Sua obra impulsiona toda uma vertente da pintura e da arte moderna que tem no Surrealismo, enquanto movimento artístico, uma de suas expressões mais estruturadas e cuja influência sobrevive ao desaparecimento do Surrealismo como doutrina estética e prática programática.

Uma seleção de cinco obras do pintor italiano, da coleção pelo Museu de Arte Contemporânea da USP, foi apresentada em breve mostra na Cidade Universitária. São elas: O enigma de um dia, óleo sobre tela de 1914 (obra exibida em Veneza na grande mostra do centenário do nascimento do pintor); Gladiadores com seus Troféus, pintada em 1927; Gladiadores de 1935; Cavalos à Beira-Mar, 1932-33; e uma Natureza-Morta do início da década de quarenta. O conjunto constitui uma restrita, mas ainda assim importante amostragem de um dos mais controvertidos e influentes artistas do século XX.

Dos muitos paradoxos e contradições que permeiam o projeto artístico de De Chirico o mais fundamental talvez seja o do construtor da modernidade pictórica, através da influência de sua obra nas primeiras décadas do século XX, enquanto cultor de uma inatualidade (Nietzsche) essencial. É preciso ressaltar que, ao lado das contradições, uma profunda coerência se desenha na trajetória de sua pintura, ou melhor, nos motivos e nas forças individualizadas que a impulsionam. Podemos mesmo afirmar que na polêmica que cedo oporá De Chirico aos surrealistas, após a inicial celebração do gênio do pintor italiano por parte de André Breton e seus seguidores, ambos os lados, cada um a seu modo, tem razão.

Para André Breton, a obra inicial de De Chirico é, e permanecerá apesar da violenta polêmica subsequente, um “farol” a apontar o caminho de toda uma dimensão poética do sonho vigilante, de uma terra ignota do espírito e da cultura moderna que o poeta francês pressentia em suas investigações e experimentações literárias, e no esboço de programas artísticos, mas cuja forma concreta lhe é apresentada ou revelada, pois para Breton trata-se propriamente do choque de uma revelação, na pintura do jovem e ainda desconhecido artista italiano chegado a Paris em 1911.

Para De Chirico, por outro lado, a coincidência de sua temática e de sua visão poética com a dos surrealistas, com os quais partilhava em princípio interesses próximos, vai se revelar, logo após, fruto de um equívoco por parte de seus admiradores iniciais. Este grande individualista, formado na Munique do fim do século, na leitura de Nietzsche e Schopenhauer, rebela-se contra o uso de suas criações, ou a leitura delas, pelo dispositivo surrealizante que se projetava como uma das faces da modernidade artística em sua definição essencial.

Como observa W. Schmied,[1] De Chirico é, por circunstâncias mas também por inclinação e convicção profundas, um outsider. Nascido na Grécia de pais italianos, educado na Alemanha e na Itália, vivendo em Paris, cedo realiza uma síntese individualizada de suas vivências pessoais e culturais, tendo como pano de fundo a atmosfera clássica, a paisagem de sua infância retrabalhada na conexão germânica da filosofia de Nietzsche, que podemos denominar de “transclássica”, com a Grécia pagã e mitológica. É bom lembrar que a poética nietzschiana inclui igualmente uma visão romantizada, por assim dizer, do Mediterrâneo e das cidades italianas.

Por outro lado, a Grécia se reflete na arte e na cultura alemã em fins do século XIX na pintura de temas mitológicos de um Feuerbach e principalmente de um Böcklin, o qual une uma imaginação narrativa a um realismo virtuosista do desenho e da cor, chegando, em alguns momentos, a um simbolismo vigoroso, por outras vezes a uma literalidade e mesmo uma certa vulgaridade burguesa no tratamento “realista” de temas clássicos e mitológicos.

A cavaleiro entre culturas e mesmo entre épocas históricas e espirituais diversas, entre Paris, coração da modernidade, e Munique, cuja concepção do moderno se enraíza ainda em vários aspectos no século XIX, De Chirico atinge inicialmente uma síntese “classicizante”, a utópica conciliação, momentaneamente feliz, de impulsos conflitantes no próprio centro do projeto da Pintura Moderna.

Após a fase chamada de Pintura Metafísica, com suas características transfigurações desoladas de espaços urbanos e da arquitetura italiana, de espaços ao mesmo tempo descontínuos e unificados, da relação contígua de objetos e fragmentos de uma arquitetura interior ou interiorizada, os temas “classicizantes” ganham proeminência na obra do pintor, que é então acusado de traição à causa moderna e à sua própria visão inicial. Desta evolução, os trabalhos expostos no MAC puderam apresentar, ainda que sumariamente, uma evidência. A concepção de uma ruptura artística na obra de De Chirico prevalecerá na historiografia do modernismo.

Por outro lado, podemos igualmente observar que os signos da Metafísica, da Memória, do Sonho e do Simbolismo cotejam frequentemente, ou mesmo sistematicamente, em De Chirico o equívoco como um dos seus traços fundamentais que remete sempre, por esta mesma via, a uma profunda, sutil e perturbadora ironia enquanto o outro lado do Simbolismo e da Significação, presa à superfície silenciosa e ativa da pintura. Neste sentido, o solipsismo dechiriano se revela como uma possível fidelidade maior e mais coerente a uma das faces, obscurecida e fundamental, da própria modernidade. De Chirico seria, deste modo, como provocador, bufão, excêntrico e louco, o surrealista mais consequente.

*Marcelo Guimarães Lima é artista plástico, pesquisador, escritor e professor.

Nota


[1] W. Schmied. L´arte Metafisica di Giorgio De Chirico nel suo raporto com la Filosofia Tedesca: Schopenhauer, Niezstche, Weininger. In: De Chirico nel centenario della nascita, a cura di M. Calvesi, Venezia, Museo Correr, 1988.


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